Sonhava com o dia em que o conhecera. Distinto soldado, elegante, moreno, de um sorriso ferido e olhar esperançoso, transbordava orgulho. Recebia naquele dia um distintivo pelos serviços prestados. Uma medalha de prata resplandecia agora no sei peito, encobrindo anos de guerra fria contra iguais.


Vestia um formoso vestido azul escuro, cor distinta na moda da época. O veludo sempre lhe assentara bem nas curvas aprazíveis que herdara da mãe. O chapéu de abas largas sustentava um laço longo e pesaroso, meticulosamente pregado, que ondulava embalado pela brisa primaveril. O cabelo apanhado acrescentava sobriedade às amendoeiras em flor, que apelavam à felicidade das tardes vividas nas esplanadas mais conhecidas, numa busca desenfreada pela divulgação social.


Passara a tarde a olhá-lo, já não tinha como esconder. Fascinava-lhe a forma cavalheiresca como conversava com outros. Num acto embaraçado, repousou os braços delgados sobre as traves que acompanhavam a beira do cais, onde os barcos bailavam harmoniosamente nas ondas calmas. Gostava de ver o mar e a forma agressiva, e simultaneamente carinhosa, como a maresia deslizava pela encosta. Sentindo a brisa deslizando pelo rosto, deixou-se ficar um pouco mais. Olhou para trás curiosa, e ele lá estava. Do meio do porto o homem que estivera admirando durante a tarde, aproximava-se. Corou por dentro.


Tudo o resto lhe era vago. Apaixonara-se num segundo, vivera o sonho num segundo, pois foi num segundo que tudo escoou.


Um grito!



Mais uma vez acordava, com a vizinha reclamando, que a agua da caldeira não se encontrava aos 38,5ºC, que a donzela exigia duas vezes ao dia, apenas, para tratamento do seu reumático psicológico. Arrancada daquelas memorias, a velha era confrontada agora, em choque, com a realidade em que sobrevivia… Só, incomensuravelmente, só. E decidida caminhou até ao baú junto da sua cama. Levantou o tampo, deixando-se invadir pelo cheiro a pinho, a tempo e pelo branco imaculado das rendas que ali guardava. Estava cansada daquele bando de galináceas egoístas, que dela troçavam nas esquinas. Invadiu-a o mais profundo abandono. Vivia apenas por viver. O cano estava realmente frio, gelava até contra a testa…







Maria foi encontrada estendida na sua poeirenta poltrona, junto à janela, pelo carteiro que rapidamente avisara a policia. O seu corpo iluminado pela luz do sol, parava por instantes no tempo.



Enfim, resplandecia.
para a minha avó

1 comentário:

disse...

vai ver o meu blog novinho em folha "bodegadas.blogspot.com" =D

beijinhos birbaleta

PS: e muito a proposito...ta muito fixe este texto:D